Invocações |
![]() |
![]() |
![]() |
INVOCAÇÕES
MARCO ALEXANDRE DA COSTA ROSÁRIO
POESIA
EDITORA OGMIOS (SEACULUM OBSCURUM)
BLITZBUCH 1991
“A poesia deve ser feita por todos” (Isidore Lucien Ducasse-Lautréamont)
“Amigos, sondem o labirinto” (James Douglas Morrison)
“Senhoras! Levantem as saias. Vamos atravessar o inferno!” (William Carlos Williams) Para Regina Lúcia.
o anjo despertou ao amanhecer e estendeu as mãos para o sol, sua voz celestial ecoou pelos salões do tempo infinito, numa linguagem qualquer... lembrou-se ele daqueles que o feriram como num filme antigo, de imagens gastas, o coração negro e cheio de ódio, a razão iluminada e cheia de amor.
o livro nos mostra recordações inúteis, versos esquecidos em uma câmara funerária, dentro do cérebro torcido de um cão, corredores apodrecidos onde lhe será erguido um monumento.
você tem medo de alguma coisa? não é preciso... apenas olhe através desta manhã e observe as criptas e as rosas no cemitério do amor, cada rosto que se foi, cada imagem que nos seduziu, até virarmos pó... alguma palavra? imagens que ainda queira reter? desertos humanos que ainda queira percorrer? Ooh! Infelizmente o filme acabou...
atravessando o crânio apodrecido de uma besta humana,
cambaleamos calados & sujos de bar em bar, até afundarmos no oceano de asfalto,
sob as luzes dos faróis dos automóveis, iluminados por fogos-fátuos;
a realidade que esculpimos seria um sonho que, quando adormecidos & bêbados, daria lugar à realidade invisível de uma cópula selvagem
filhos brotando nas calçadas, filhas vadias, banidas de casa, morando em santuários noturnos, sem divindade; o medo no esgoto cerebral & forasteiros roncando o motor nas fronteiras.
Ela surgiu de um beijo na noite & emergiu para rir até os confins do amanhecer.
disse ela à mãe: - teu mundo não vive em minha carne.
disse ela à mãe: - tuas algemas não servem para mim.
disse ela à mãe: - tua escola incendiei.
& então acusaram meu amigo de adultério por ter ele queimado um beijo na boca da mulher-serpente & ela, filha de uma cadeia de má sorte, sorriu & todas as mulheres contra uma, quando se sabe que a mulher do presidente ama atrás de Kepes & Lekes... tudo por uma iniciativa sexual privada & libertária, & após a festa de casamento ela agiu para destruir & não para construir
l e e nos atormenta ainda c s e á l m este pesadelo cósmico a o s g a no verão e b p r s celestial m r í i m e e r m o u nesta cidade a i a r não há rumo s n t s r l nem referências o o e e e s s c u i s s h t & só os ratos t o i o o encontram exílio r s n r no refúgio dos corpos e f a p l e m ú lapidados a r o r pelo sol s n s p de verão a u i & r s a
c s e n o v e nada se move a o s e e para além e b p m n dos portões m r í t e r o a i s n t n o s nem o vento o o e a nem o sangue e s s m n nem a voz s s g t o c u r s e e e l l e n a v nada se move a s e o nada se move s t m z nada se move i a i s
e d n as horas fragmentam-se o o s o a no esquecimento ã p s d dos séculos l s o a a o i r p & os milênios b l o a o s fogem das mãos o ê s r e do sonhador n a t c m l õ m num entardecer i e é e o de concepções o s m s v tardias m e o s
n v n nesta cidade i v s e e e vimos a exuberância n e ã m n m de muitas mulheres v r o t e ã o o o num beijo sem r o o significado n s s n v & empoeirado o a e o m n m z pelas estações... e g pelas estações s u a pelas estações... m e o s
n s m sempre o inverno o o s a e o & depois ã d v o verão c s o a e a a em algum ponto d n o s s s solar á t s e e e nesta cidade v u m m m e á m p p p descuidas o cadáver r r e r r r abandonando-o em teu i s e e e santuário de expiações & o m o s
n s m sobre os muros o a s a e o de palha e sobre ã d v as pontes m p o a e u o nada se move r n o nada se move o t s nada se move e m nada e nada s nada m o s
& orações fora do tempo & então percorremos as áridas referências a procura de um sangue qualquer,
derramado em nossos sonhos, para provar tua exuberância... olhos paralisados em fontes estagnadas. & a poeira sobre as estações... ela suspirou nas áridas referências esperando a oitava hora.
todos os fins correm para as referências de um único fim e o teu fim em todos os fins não está... o teu fim repousa em algum encontro desordenado.
cada poente é uma espera para um retorno possível & estando ali, ou do outro lado deste lugar, não há existência que habite
onde as portas estão fechadas & as casas em declínio servindo de exílio para o rato e para a sacerdotisa num muro de palha erguido para o vento.
a morte é e sempre será prisioneira da inconstância da vida. porém, só a morte da vida construirá um novo caminho para além do infinito, para além dos portões desta cidade.
manhãs em fragmento, horas em ordem feitas para a desordem... aurora estilhaçada em pontos de ônibus por aqueles que limitam o jardim para nada criar.
& assim fizeram aqueles que ontem aguardavam a próxima viagem & agora germinam escassez nos cemitérios, copulando com quantos pelas ruas caminhassem,
até que uma nova onda de afrodisíacos os levassem às sepulturas ou a um novo altar de revistas pornográficas onde uma janela nos mostra um campo apodrecido.
procuro a flor, a voz não mais existe nas horas do relógio a voz está mutilada pela confusão do silêncio & as horas do relógio estagnadas para sempre
o vento, a dama e uma antiga dança, ainda que a música não possa mais ser ouvida neste quarto de insanos.
ali, no campo descolorido, onde me disseram viver a sabedoria, fiz um exílio e oculto meus significados. ali, tudo converge para um fim único.
fomos para os vales deixando a cidade para trás. adormecidos, vimos o girar das constelações desejando o significado do tempo e o entendimento do silêncio
fomos para os vales deixando a cidade para trás
há em mim o homem e o lobo há em mim o são e o insano há em mim homem e mulher há em mim velho e criança
fomos para os vales deixando a cidade para trás. adormecidos, vimos o girar das constelações desejando o significado do tempo e o entendimento do silêncio... as visões do silêncio.
vai até à beira do rio e ouve o silêncio
ele é teu único amigo o silêncio o silêncio o silêncio o silêncio o silêncio o silêncio
teu... único... amigo...
o silêncio... o silêncio... o silêncio... o silêncio...
o silêncio a cada novo escândalo, ele regressava à casa como se viesse de uma grande batalha, sempre amparado e conduzido por estranhos espectros do passado, solitários espíritos, irmãos invisíveis, e o caos que criava, todas as noites ficava para trás em seus pensamentos, e na manhã seguinte regressava à vida em meio a névoa, e diante de um sol imaculadamente doido olhava os retalhos de sua vida.
Os homens-cães andavam em suas motos através da planície. Mulheres-tristeza os acompanhavam, mudas e quietas, a cada parada, para fazerem um saque, ou estuprar alguma serpente. Entre eles havia um, o mais sábio e mais belo, seus cabelos dourados o vento acariciava. Ele teve uma estranha visão: a morte que nos desperta para a própria morte, em um universo repleto de estrelas negras. O homem-cão olhava para o sol e para a lua e imaginava como roubar seu bando da morte, antes que o dilúvio tivesse seu novo ciclo, e um novo pesadelo espalhasse suas sementes outra vez.
Guitarras são ouvidas e esquecidas Dançam aleijados, loucos e leprosos, a espera de novos discos: a tribo tem aí seu mais belo ritual. Suaves são os sons que o músico, ressuscitando embrionárias lembranças, tece. Criador de artificiais paraísos.
A morte afoga nossos sonhos no vasto oceano da inconsciência. Silencia o amor e cala as paixões, encobre de esquecimento as carícias, o romance, esfria-nos com um único e último beijo. Sem ninguém a seu lado, vaga ela pela rodovia... lágrimas enegrecidas pela poeira são derramadas sobre o corpo de seu amante. Ela quer nos propor alívio de vida, ou a viagem para outros palácios de sonhadores, que não podem mais ser lembrados.
Foge desta cidade, humilde habitante. Leva contigo tua mulher e teus filhos, pois, o anjo aproxima-se dos jardins e dos portões.
Pela rodovia...estupro, casas incendiadas, saques, morte, loucura, homens enlouquecidos, viagem profunda, dentro do pesadelo sem fim.
viagem profunda, dentro do pesadelo sem fim.
viagem profunda, dentro do pesadelo sem fim.
viagem profunda, dentro do pesadelo sem fim.
você recordará meu rosto quando eu não estiver mais aqui?
você poderá me ouvir rindo entre as estrelas?
de que cor eram meus cabelos?
meu riso, que som tinha?
era profundo o meu olhar?
você lembrará de mim daqui a milhares de anos, numa distância que minha alma não lhe pode descrever?
Acorda do sonho da morte!!!
nossos corações batem por muito pouco tempo.. assemelhamo-nos aos vermes, somos frágeis... toquemos os tambores e flautas e violas... despertaremos os cemitérios no fundo do oceano.
congreguemo-nos na areia estrelar deste universo, exijamos o amor enquanto estamos vivos. multidões de olhos famintos por vida, grandes espíritos reacenderão a vida para a vida novamente,
as escolas estão apodrecidas, nos ensinam mentiras. semearemos flores, então, e edificaremos novos jardins
precisamos curar nossas feridas precisamos apagar o ódio precisamos de amor, límpido amor
incendiaremos motéis, libertaremos frágeis almas ingênuas abriremos as portas e as janelas do céu vazio e mostraremos o sol à prostituta
precisamos de liberdade precisamos beber o doce vinho precisamos de nós mesmos apenas
Dançaremos na noite no interior da floresta, não muito longe do mar, em volta do fogo... celebremos constelações & significados
não muito longe do mar não muito longe do mar não muito longe do mar n m l d m ã u o o a o i n r t g o e
n ã o m u i t o l o n g e d o m a r
“Outrora, quando o mundo foi povoado pela primeira vez, não se viam rios, pois estavam fechados em uma caverna...Os acessos dessa caverna estavam bloqueados por um enorme rochedo. Não só os rios mas também os seus habitantes estavam fechados, como o salmão. Primeiro foi o corvo que conseguiu vencer essa barreira. Depois o rio Bella-Coola ficou livre.”
“O velho Homem-Coiote construiu um barco. Começou a chover de tal maneira que as montanhas ficaram submersas. O coiote viu dois patos e pediu que mergulhassem, procurassem terra e a trouxessem. Um deles desapareceu sob as águas, mas o outro conseguiu trazer no bico um pouco de lama, a qual o coiote espalhou a sua volta e se tornou a terra. Traçou nela rios, modelou montanhas. Dessa lama fez nascer bisontes e cães, e todos os animais, inclusive o homem. Da mesma lama fez para si uma esposa. O coiote instituiu também ritos, entre os quais o de uma dança por cada inimigo morto.”
as chaves do jardim foram perdidas... do cemitério, canções são ouvidas, suplicantes... este mundo de dinheiro apodreceu, ainda que tenha o poder de comprar e vender ilusões, alívio em lojas, mulheres e risos... este reino está no fim.
ignorantes aberrações em motéis são flageladas, mas nunca o delírio do amor vive em tais santuários há fome nas ruas, há sangue nos presídios homens-porcos acendem seus cigarros & almoçam suas mulheres-abutres numa orgia de interesses
esqueceram a gente humilde, habitantes sonâmbulos nas margens da rodovia... esqueceram o amor que os regenerava... esqueceram a aventura de viver... ridicularizaram e destruíram os antigos sonhos...
não tenho lembranças de minha mãe um quarto com livros e música e uma mulher que pode ser amada parece-me um mundo bem melhor
minha verdadeira família vive do outro lado deste rio
exuberância e forma, vertente de palavras encantadas, libertário de ódio e indiferença no empoeirado ridículo dos dias. dédalo pálido e ocasional, respirando calmamente na cloaca. testemunha de suas próprias encenações, no pavilhão luminoso dos espíritos.
o belo ébrio. amigo íntimo dos espantalhos crucificados, doentios, vestidos de ambições acadêmicas, embrutecidos e famintos por sentidos e percepções.
criança de mil imagens, num olhar de mil anos, cansada e devastada, cabelos longos e dourados, ordenando a confusão... a anciã imóvel, repleta de vida.
numa manhã se viu paralítico... o antigo caminhar esquecido, ao qual nenhum valor deram, ainda que procurado, jamais alcançado.
anônimo, foi exposto à multidão, assassinando o que vira antes em sua mente envelhecida... não lembrou que o tempo retira as máscaras dos enganos. artífice do rei nos palácios musicais, letrado e anacrônico, fez a mentira transformar-se em verdade, veio do pó, e num impulso de grandeza virou resto humano
um observador,
contemplando a memória apagada transfigurar-se em novidade e a enrugada profecia cumprir-se em risos e lágrimas sobre a massa bestial de osso e carne, de passagem pelas ruas, estacionadas em praças, ainda ignorantes e ainda imobilizadas, esmolando a existência em motéis e em igrejas.
tal qual a serpente, sem respostas, mas com determinação, rodeou a alma de algumas mulheres, dizendo-lhes como o amor encontra-se além de todo entendimento e circunstância.
O Criador nos deu o chão para caminhar, e por várias vias percorrer toda a extensão e entender o que está para além de nossas orações; infinitas salas de sonhos e pesadelos profundos oceanos e céus irrespiráveis, rituais e celebrações ao luar em florestas obscuras, cópulas cristalizantes convertidas em lodo, sóbrios petrificados, delírios e murmúrios nas ruínas, o rio perpétuo explodindo sem nunca destruir. o óbvio, o aniquilamento, a repetição contínua, indefesa, submissa. o despertar hibernando os desejos... os espelhos, os corredores de imagens sucessivas, a ânsia nunca interrompida ao redor do nada, vomitando dor e fuga, e inconstância de fala.
o bobo, o ingênuo, o louco, o poeta, o filósofo, o artista e por fim advogado
sem mais nem menos caiu e morreu!
os que choravam cercaram a sepultura, e deixaram suas inscrições na lápide, ainda que cuspindo no pobre espantalho.
e do cemitério todos se foram, e o santuário do silêncio fez-se presente
há serenidade no silêncio, tudo pode ser pressentido de muito longe
e a sepultura virou útero,
homem sábio, nascendo novamente, as cinzas deixadas ao vento, a antiga pele queimando ao sol.
ele tudo arruma, suas lembranças, sua vivência, sem vestígios e sem recordações, e vestido com roupas de linho, os cabelos cortados outra personalidade atravessa sua contínua essência. limpou as botas no cemitério, e partiu,
caminhando para a cidade. |